Vox populi vox dei


Sem absolutamente qualquer controvérsia, esta nação pode ser encarada como uma nação de contrastes. Entretanto, tirando a análise social da questão, quando se parte aos poderes do Estado, estes contrastes se expõem de modo visível. Ao presenciar a atividade dos diversos órgãos de poder, ao mesmo tempo que se pode achar inspiração e vislumbre, se encontra uma antagônica decepção. Tal fato, não foge a regra, sobretudo, ao Poder Judiciário.

Planaltina - Distrito Federal, 24 de Maio de 2011.
Em plena terça-feira, ocorreu um Tribunal do Júri. Sabia? Pois bem, um julgamento aconteceu no decorrer da tarde de ontem, aberto ao público e eu, assim como diversas outras pessoas, estava lá. Contudo, não estava sozinho. Encontrava-me acompanhado de uma singela moça, mais baixa que eu, embora não assuma isso, de cabelos morenos, olhos de jabuticaba, um ingênuo sorriso, vestida de modo muito elegante e com um perfume da Carmem Steffens que me deixa louco! Uma moça a qual gosto de usar uma forma de tratamento bastante particular. Perceba caro leitor, que não estava mal acompanhado.

Ao chegarmos no fórum de Planaltina, nos deparamos exatamente com uma das primeiras situações inconvenientes: O Judiciário, de modo geral, tem estimulado muito a participação popular nos julgamentos e no próprio dia a dia da justiça. Deste modo, haviam muitos curiosos na plateia e muitos estudantes de Direito para assistir ao julgamento (Perceba que quando digo muitos quero dizer MUITOS MESMO). Ao chegar no tribunal do Júri as 14:00 Hrs as cadeiras já estavam completamente ocupadas. A não ser, por algumas que ocupavam na verdade bolsas da Louis Vuitton e similares com intuito de guardar o lugar. Literalmente, algo babaca de se ver. Vai tomar vergonha na cara! Vir guardar lugar no fórum? Essa falta de educação deixou muitas pessoas de pé durante um bom tempo. Mas enfim, após todos se acomodarem, do modo possível na plateia, deu- se inicio ao caso.

O julgamento pelo tribunal do júri é algo particular na justiça brasileira, ocorrendo apenas nos casos especiais de crimes contra a vida. Uma gama curta de delitos tipificados no Código Penal brasileiro. Entra na sala o Excelentíssimo juiz de Direito, o Promotor de Justiça, os dois réus e o advogado de ambos. Deu-se a leitura dos autos. O caso seria julgado com base no artigo 121 do CP. Neste momento, não havia mais dúvida. A norma de conduta mais famosa de todas: Matar alguém. O julgamento seria por crime de homicídio.

Encerrando a leitura dos autos, iniciou-se o processo de formação do corpo de jurados. "Fulano da Silva". "Aceito". "Aceito". "Beutrano de Sousa". "Aceito". "Recuso". " Recusado pelo Ministério Público". "Ciclano Pereira". "Aceito". "Recuso". "Recusado pelo Ministério Público"... Formou-se o Júri com sete jurados.

Na primeira parte do julgamento, tem inicio o interrogatório às testemunhas, assim como dos réus. Foram quatro testemunhas no total e junto com o depoimento dos acusados formaram a situação do crime. Interessante foi ver que os depoimentos das testemunhas batiam certinho, apenas uma delas ficou confusa, falou questões na base do "achismo" e não se recordou de muita parte, nem mesmo de certas coisas que a própria disse à delegacia de policia há cinco anos atrás.

No dia de aniversário de umas da testemunhas (Joana pra facilitar), seus amigos e parentes resolveram promover uma festa particular na casa dela própria. Entre os convidados e organizadores estavam os réus (Pedro e João). No decorrer da comemoração, houve um atrito entre Pedro e o irmão de Joana, Marcos. De acordo com os altos, teria Marcos chamado Pedro de "Bombado Boiola" diversas vezes. Com a intenção de irritá-lo e ofende-lo. O que de fato ocorreu. Pedro foi tirar satisfação com Marcos, dizendo que ele não tinha amizade nenhuma com ele, que ele não tinha intimidade de fazer esse tipo de brincadeira e que ele não deveria falar mais aquilo. Marcos, por sua vez retrucou ameaçando Pedro, dizendo que ele havia mexido com um malandro e que agora ele iria ver. E saiu apressado pra fora de vista. Pedro então, sentindo o clima pesar chegou pro seu amigo João e disse: " Bora João, deu pra nois. Vai dá merda aqui. Vamo Bora!". Ao entrarem no carro de João, Joana, sua irmã Maria (outra das testemunhas)e Luzia (irmã de Pedro) que presenciaram a discussão, foram ao encontro dos dois e disseram pra não irem embora porque foram eles que organizaram a festa e sem eles ela ia acabar. Disse que o irmão delas estava bêbado e que não sabia o que falava. Pedro então retrucou dizendo que Marcos o ameaçou e parecia ter ido buscar uma arma. As irmãs negaram, disseram que Marcos era muito encrenqueiro mais jamais faria isso, porque a família delas não era dessas coisas. "Ele então pode não ter uma arma, mas eu tenho!". Disse Pedro mostrando um revólver(que de acordo com seu depoimento não era registrado. Não tendo, portanto, porte legal de arma de fogo). Neste exato momento, Marco aparece de surpresa correndo de trás das irmãs e surpreende a todos. Tenta atacar Pedro com uma faca (tipo peixeira), mas acerta Luzia com uma punhalada que lhe corta o braço de raspão. Imediatamente, Pedro empurra sua irmã pra longe da briga, o que faz Marcos lhe acertar uma facada na perna. Intuitivamente Pedro atira no ombro de Marcos que, contudo, ainda avança pra cima do mesmo. Um segundo tiro e disparado na perna de Marcos que cai de joelhos. Um terceiro tiro e disparado a cegas e Marcos cai no chão. Desesperado e no calor da ação, Pedro grita pra João : "Vaza, vaza, vaza!" e João arranca o carro, que passa sobre as pernas de Marcos, fugindo do local do crime.

Assim, estava desenhado tudo que seria julgado, do mesmo modo, as acusações aos réus. Homicídio, por parte de Pedro e auxílio e cumplicidade por João.

Terminado o inquérito às testemunhas, abriu-se a sessão de debate das partes. Foi algo interessantíssimo de presenciar! Ambas, a acusação e a defesa, foram brilhantes na sua argumentação. É muito bacana ver a atuação do Estado, sem o grande enfoque da mídia e sem privilégio as partes. Foi uma chuva de princípios penais e da doutrina de modo geral, princípio da legítima defesa, porte ilegal de arma de fogo, abolitio criminis, homicídio privilegiado... Querendo ou não, foi vislumbrante ver a ação das partes, o quanto elas estavam se empenhando na sua argumentação e o tom de seriedade e colocavam em suas palavras. O Promotor de Justiça se destacou muito pela forma em que conseguiu redesenhar os fatos, formulando a situação não como uma legítima defesa, mas como um duelo já pré-estabelecido pelos dois. Criticou o uso de arma de fogo de porte ilícito, zombou do motivo fútil para um acontecimento trágico. Cobrou do réu um atitude mais racional. Fez perguntas retóricas aos presentes como: "Quem nunca na vida foi xingado de viado?", "Quem nunca presenciou um bêbado falando bobagem e relevou?". Além disso, tentando montar uma imagem de sensato e honesto, reconheceu o erro da vítima e concordou com a defesa, sobre a inocência do réu João. Fechando com uma cartada de mestre, usou o apelo emocional para convercer os jurados se achariam normal a absolvição completa do réu. Disse que fazendo isso, iriam estar concordando em achar comum um convidado ir armado a sua festa e matar seu próprio irmão.

Após o juiz suspender a sessão por dez minutos, o clima no tribunal era bastante enérgico, as pessoas não paravam de comentar sobre o possível veredito. Ambas as partes haviam proporcionado um ar de indecisão. Embora a acusão tenha se saido bem, o advogado dos réus usou muitos argumentos da doutrina e bom-senso. Afirmou o quanto e delicado uma situação como a presenciada pelos réus, o quanto é difícil agir com extrema racionalidade, quando alguem lhe ameaça com uma faca e o quanto é subjetivo o ferimento moral das pessoas. Conclusão, todos na sala estavam discutindo sobre o caso. Minha própria namorada a Ste ao meu lado disse pra mim: " Nossa, to me sentindo naquele seriado Law and Order".

Contudo, embora o julgamento estivesse interessante, até aquele ponto, não pude deixar de notar várias coisas contrastantes e, de certo modo, revoltantes, que me levaram a escrever este post. Primeiramente, pensei o quanto devia estar sendo desconfortável pro réu ao ver as pessoas, que nunca tivera contato algum, falarem sobre a sua vida e o julgando na sua frente. Para piorar a situação, como o tribunal do Júri estava muito cheio, foram improvisados acentos de última hora. Vários foram colocados na parte superior da sala(Local onde acontece o julgamento propriamente dito e onde não pode estar alguém da platéia), fazendo com que as pessoas estivessem sentadas praticamente do lado do banco dos réus e da defesa. Foi um desrespeito total aos acusados. Destaca-se também, que além da sala estar lotada e muitas pessoas estarem amoltoadas e sentadas na área de julgamento, muitas estavam comendo e deixando lixo no Tribunal. Sabe foi uma cena feia, de descaso. Posso estar sendo muito metódico, mas entende? Você se encontra em um ambiente que, querendo ou não, representa o Estado. Vai ficar jogando pacote de biscoito no chão? Copo descartável no chão? Qual é ...

Ao ser retomada a sessão, iniciou-se a réplica das partes. Desta vez, muito diferente do que ocorrido no começo do julgamento, as réplicas se tornaram ociosas e apelativas. Era evidente que haviam se esgotado os argumentos da defesa e da acusação. Foram duas horas literalmente "enchendo linguiça". O Promotor de Justiça agora enfatizava que o réu teria executado a vítima a queima-roupa e apelou para questões religiosas: "Quais são os fundamentos da igreja? Não é amar ao próximo acima de tudo? Pois é, ele não amou!". Foi algo desnecessário e anti-ético, ao meu ver. Segundo, quero ver você amar alguém com uma peixeira na mão indo de matar! O que o réu devia fazer? Virar a face e dizer:" Acerta aqui!"?
Não foi diferente com a defesa, o advogado não sustentava mais argumentação de legítima defesa. Não explicava questões cruciais, como o terceiro tiro que, segundo laudo do IML teria entrado pelas costas da vítima. Não esclareceu se teriam passado por cima das pernas do vítima ou não.(Algo que achei estranho, uma vez que a perícia poderia detectar se o cadáver foi atropelado ou não). No final das contas, percebendo que perdia apoio na tese de legítima defesa, mudou de estratégia sutilmente e sugeriu a condenação de homicídio privilegiado, que reduziria bastante a pena do réu.

Entretanto, o que deixou pior a segunda parte do julgamento, não foi a ociosidade do debate. Pode-se perceber no decorrer do julgamento, que as partes eram amigas. Na réplica de ambos, começaram a brincar e a provocar ambos de forma um tanto imatura. " A arma branca como disse uma das testemunhas era de 30cm"!(gesticulando o medida da faca)."A perdão Dr. Promotor, não vou fazer mais estes gestos para não atiçar o senhor". Pertinência do comentário? Pois é...

Os jurados então foram se retirar à sala especial para decidir o veredito. O excelentíssimo juiz suspendeu mais uma vez a sessão e então tudo virou uma farofada! Já eram 18 horas da tarde. Todo mundo tava cansado, mas teve gente que deitou mesmo, gritava... O ápice de tudo ocorreu, quando o Promotor de Justiça tentou acertar uma bolinha de papel na lixeira, errando e acertando o microfone causando microfonia. Enquanto isso o advogado tava conversando com algumas pessoas procurando saber como se usava um IPAD e os pobres dos réus lá sentados. Quem não tinha nada mais o que fazer arranjava e eu tava indignado e conversando com a Stephanie sobre como aquilo tá uma farofada. "Nossa se algum dia eu for juíza a primeira coisa que eu ia fazer era bater o martelo e dizer que eu prezo pela ordem e a educação, obrigada!" Disse ela.

O juiz voltou a sala. Imediatamente todos se calaram. "todos de pé!" Ordenou ele. o júri retornou. Foi lido o veredito: culpado. Para o segundo réu, a sentença foi absolvição. Cabia neste momento ao magistrado determinar a pena. Usando tudo que foi abordado no julgamento, a condenação foi de homicídio privilegiado, ou seja, de acordo com o art 121,§1ºdo CP(Código Penal), se o agente cometer o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço. E como o homicídio ocorreu sem nenhuma agravante ou qualificadora, a pena deveria ser fixada entre 6 a 20 anos de reclusão. Usando uma interpretação bastante maleável, o juiz condenou o réu Pedro a 6 anos de reclusão, como a diminuição de um terço em regime aberto. Ou seja, 4 anos de regime aberto.

Então caro leitor, qual a sensação? Justo? Injusto? Foi possível fazer alguma análise dos fatos apenas pelo que narrei? Bom se foi justo ou injusto achei muito difícil dizer, em dúvida fiquei o julgamento inteiro, a legitima defesa ainda me pareceu existir. Assim sendo, como dizem os romanos: in dubio pro reo. Ao terminar o julgamento, entretanto isso não foi o que mais me fez pensar. a inrrelevância do decorrer do julgamento me deixou transtornado. O descaso da demora. Cinco anos depois do fato, ocorre o julgamento! Não foi nada além de um reflexo da sociedade brasileira. Imatura eu diria. Alienada.

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